Magno Nogueira Pereira[1]
Edebrande Cavalieri[2]
Na iminência de deixar o seminário para dar continuidade em meu processo formativo, agora como estagiário em vista da Ordenação Diaconal, compartilho com vocês, caros amigos e queridas amigas, em parceria com meu estimado professor e amigo Edebrande Cavalieri, um aceno do que abordei em meu trabalho monográfico para a conclusão do curso de teologia.
Desde tempos imemoráveis tem-se notícias de que a dor e sofrimento são realidades que acompanham a história da humanidade. Os relatos bíblicos nos atestam isso de forma bastante frequente, contudo, não é cabível dizer que o sofrimento e a dor do ser humano são realidades queridas por Deus, ou mesmo um meio de punição e castigo por alguma falha cometida pela pessoa. Não! A segunda carta de São João nos atesta que Deus é amor (1Jo 4,8), portanto, frente a esta verdade que alimenta a fé Cristã, não se pode imaginar que um Deus que é amor haverá de se ocupar em vingar ou castigar o ser humano que Ele mesmo o criou no amor à Sua imagem e semelhança e o abençoou (Gn 1, 26-28).
Esse ideal cabe a um deus mesquinho que só existe nos altares da idolatria ou em uma teologia da retribuição e meritocracia, mas nunca ao Deus de Jesus Cristo. Sabe-se que o sofrimento e a dor são realidades que coexistem a partir da realidade finita do homem enquanto criatura, que embora sendo feito à imagem de seu criador não é um ser perfeito, somente Deus é completamente bom e perfeito. Por isso diante das intempéries e vicissitudes da vida, nós, seres humanos, somos chamados a viver nossa condição de criatura e fragilidade diante de Deus, para que sua fortaleza suporte a fragilidade que é própria de nossa humanidade.
Mas longe de ser uma ocasião de desgraça e desalento, o momento de dor e sofrimento pode ser ressignificado quando o moribundo se coloca sob à sombra da Cruz do Cristo que enfrentou o suplício da dor e do sofrimento perante o silêncio do mundo e a escuridão da terra. Assim como a Cruz de Cristo aponta para a ressurreição e para a vida de felicidade, sem dor e sofrimento, também a pessoa que oferece seu sofrimento como um completar em sua carne os sofrimentos de Cristo (Cf. Cl 1,24), também receberá a glória do Filho de Deus.
As maneiras de enfrentamento da doença para uma possível ressignificação são de incumbência do moribundo. No entanto, ele sozinho não tem condições de suprir suas necessidades de cuidado dada sua fragilidade da saúde. Nesse momento entra em cena a ação compassiva e misericordiosa de quem é o próximo do enfermo.
Para arrazoar sobre o perfil paradigmático do cuidador, faz-se oportuno um olhar contemplativo do exemplo dado pelo Bom Samaritano da parábola do Evangelho (Cf. Lc 10, 29-37). O Bom Samaritano ensina que o começo do alívio das dores de um moribundo se dá quando um olhar de compaixão se versa sobre ele. A compaixão extrapola os limites legalistas que em muitas circunstâncias impedem uma ação caritativa aos frágeis e necessitados. Um olhar de compaixão elimina toda estranheza e diferença criados pelo egoísmo. O sentimento de compaixão não comporta divisão nem tampouco classificação de cor, raça ou religião.
A pessoa que se deixa mover pela compaixão enxerga apenas no outro um ser humano, e isso basta, ou seja, no outro que se descortina frente a mim, vejo um outro eu que precisa da força do meu amor para sustentá-lo. No ocaso da vida, quando as expectativas de cura já não estão mais em vigor, tudo que um doente em fase terminal necessita é um cuidado compassivo e atenção carinhosa, isso possibilitará continuar se sentindo pessoa e não um peso.
Somente com um toque de compaixão se consegue tocar alguém em sua fragilidade. A caridade e a compaixão são duas forças que se fundem e se transformam em cuidado. E a partir dessas duas forças se consegue vencer um sistema de objetivação da pessoa, prática desumana donde origina a cultura do descartável. O sentimento de compaixão é próprio de Deus, por isso, toda pessoa que se deixa mover por compaixão assume a condição de semelhante de Deus.
O exemplo do Bom Samaritano ensina à humanidade de todos os tempos que o valor da pessoa humana não está no que ela pode oferecer, ou no quanto tempo de vida ainda resta para ela, nem tampouco na sua “utilidade”, mas naquilo que ela é: pessoa, criada à imagem de Deus. E por sê-lo, merece e deve ser cuidada desde o princípio da vida, no ato da concepção, até a terminalidade de sua vida de forma natural, independentemente da idade ou situação. No sofrimento e dor de cada homem e de cada mulher de todos os tempos é o próprio Cristo que grita por cuidado. Portanto, olhar com compaixão, apear do comodismo, abaixar e envolver-se com a pessoa acabrunhada pelo sofrimento é tocar o próprio Cristo, pois lembremo-nos de suas palavras: foi a mim que fizestes (Cf. Mt 25, 31-46).
O Bom Samaritano ensina que o agir com compaixão elimina a cultura do indiferentismo que impede o ser humano de agir em prol do bem do outro. Por ser genuinamente um sentimento divino, a compaixão, faz o homem mais humano e mais autêntico, pois o faz desprender-se de si e de suas pressas para dispensar atenção e zelo a um outro de si que se encontra necessitado do remédio do amor e de um leito de caridade. Que os momentos de dor, fragilidade e sofrimento, sirvam de oportunidade para a santificação do moribundo que se configura ao Cristo crucificado e do cuidador que se assemelha a Deus que é compassivo e misericordioso.
Por fim, cabe ainda refletir o compromisso prático desse cuidado pastoral com doentes terminais. Essas pessoas podem ser encontradas nos hospitais, mas também em nossas casas, bem pertinho. Geralmente os profissionais de enfermagem não estão preparados para garantir um atendimento que satisfaça os pacientes em suas necessidades espirituais. E também as pessoas que convivem nas próprias casas com pacientes terminais também precisam de ajuda.
Ao mesmo tempo não é suficiente a prática de uma espiritualidade pontual com orações e cânticos, mas quase sempre não tocando no paciente que sofre. Uma espiritualidade distante e indiferente pouco contribui. Quem espera palco e aplausos pode desistir imediatamente desse campo pastoral. A dor não comporta palco, pois é um calvário.
Depois de realizar essa pesquisa concluo que esse campo é profundamente desafiador em termos pastorais. A primeira ação deverá ser a formação para o cuidado pastoral, com experiências práticas no atendimento. Não se trata de um conhecimento teórico, mas essencialmente prático, que toca o coração, que afeta a pele, o olhar, o afeto, o carinho, a ternura. A pessoa que se sente chamada para esse serviço pastoral deve não apenas possuir grande maturidade emocional, mas também muita serenidade.
A formação deverá ser sempre de caráter interdisciplinar envolvendo a dimensão teológica, em diálogo com o campo psicológico, antropológico, emocional e de enfermagem. É através da capacidade de transcendência que o cuidador tornar-se-á sempre mais próximo do doente terminal. E através do movimento de transcendência se constitui o sentimento de solidariedade na dor, no sofrimento. Essa é a pessoa samaritana. Aquela que é capaz de descer do cavalo, descer de seu lugar ou zona de conforto e chegar e se debruçar sobre a pessoa adoecida em fase final.
É na dinâmica de uma “Igreja em saída”, não autorreferencial, que o cuidado pastoral com pacientes terminais deve ser organizado e implementado. Os ministros ordenados são chamados para exercerem essa missão junto àqueles que se despedem da vida aqui na terra. É no encontro com aqueles que sofrem as dores do fim que o ministro samaritano se debruça e o recolhe em sua dor.
[1] Licenciado em Filosofia, co-autor do livro “Conjuntura Eclesial e Religiosa: do Sínodo da Amazônia à transição religiosa” e concluinte do curso de Teologia pelo Instituto Interdiocesano de Vitória, ES. Contatos: nogueiramagnus@gmail.com
[2] Doutor em Ciências da Religião, Professor Titular da UFES e Professor de História da Igreja e Orientação de Pesquisa (TCC) do Instituto Interdiocesano de Vitória, co-autor e Organizador do Livro “Conjuntura Eclesial e Religiosa”. Contatos: edebrande@gmail.com