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“A missão do leigo numa Igreja ministerial”

Síntese de artigo apresentado na disciplina de Pneumatologia do Instituto Interdiocesano de Filosofia e Teologia, Nov. 2023
Cosme da Rocha e Daniel Sousa Bergamin

A história ganhou contextos nunca vistos em tão pouco tempo para a humanidade. Realidades que perduraram por muito tempo, desapareceram e possuem uma tonalidade que fez com que muitas instituições mudassem seu jeito de pensar e agir, e com a Igreja não foi diferente. É no Concílio Vaticano II que o magistério eclesiástico verá essas novas realidades tão latentes. Não que a Igreja Católica se transformaria em outra instituição, mas estaria agora aberta ao novo que despontara com tudo aquilo que o homem moderno já vivia.

Basicamente, o Concílio apresentava a ideia de que a humanidade se deparava com uma realidade dinâmica e evolutiva (cf. GS, n. 5) e assim, essa nova época faz com que os homens tenham formas diferentes para encontrar com a fé. Surge então na história uma forma de viver a fé a partir de uma leitura espiritual na história do povo simples, das realidades mais desafiadoras possíveis da vida. Aparece nessas comunidades uma oração de alegria e de liberdade (cf. COMBLIM, 1987, p.28), dado ao contexto oferecido a esse povo. Para Comblin (1987, p.26) “somente o Espírito fará surgir as novas expressões da fé cristã.” O Deus onipotente e imutável é motivo de crise radical para a humanidade. Logo, um modelo de Igreja apegada a realidades antigas, já não é mais possível.

Alguns sinais dos tempos evidenciam experiências do Espírito no jeito do leigo viver a sua fé. A Palavra de Deus não é algo antigo, cristalizado, mas que sempre se atualiza na história de vida do povo de Deus. Esse povo lê a Bíblia a partir da experiência que o Espírito realiza em cada crente. A oração também é sinal dessa realidade do Espírito. Por vezes, fora marcada no uso de formulários que impossibilitava uma livre expressão desta fé, por motivos historicamente colocados. De acordo com Comblin (1987, p. 28) “o povo cristão que parecia mudo e incapaz de expressão religiosa aprendeu a falar”, e com isso de meros expectadores dos sacramentos, o povo começou a celebrar e a viver intensamente sua fé.

Na realidade eclesial, todas as ações são carismáticas pois procedem do Espírito Santo. Nesta comunhão de carismas, não há oposição entre Cristo e o Espírito. De acordo com Comblin (1987, p.198): “Pelo contrário todos os seus carismas procuram reencontrar o que Jesus disse e fez.” Dessa forma, o Espírito Santo há de ser aquele que irá conduzir o povo nas suas mais diferentes situações.

Os leigos vivem a sua vocação na comunidade sempre, em cada momento comum, sejam os desafios, sejam as conquistas. É uma vivência eclesial aberta as diferentes realidades, que ousadamente não se limita apenas ao interior da Igreja Católica, mas que atinge a todos. Já na tradição da Igreja oriental, todo o povo é pneumatóforo, isto é, portam o Espírito Santo. São carismáticos porque são ungidos pelo Espírito Santo. Logo, povo de Deus não é apenas a porção do clero, mas todas as vocações presentes na Igreja (cf. BINGEMER, 2013, p.108). Bingemer acrescenta (2013, p.108): “O batizado, incorporado a Cristo e ungido pelo Espírito, é partícipe das riquezas e responsabilidades que seu batismo lhe dá. E, por isso, não é menos consagrado nem menos vocacionado que outros”.

O leigo batizado é membro pleno do povo de Deus. É na vida de Cristo que todos terão o exemplo para seu estilo de vida. Tal comunhão implicará a ação do Espírito que será o consagrante e o cristão o consagrado na ação salvífica de Deus (cf. BINGEMER, 2013, p.110). A fé que lança no ser humano esta confiança a Deus é algo livre, um dom gratuito que só pode vir do alto. Por meio da ação do Espírito Santo, a obra de Messias se realiza continuamente na salvação da humanidade. Presentes nos sacramentos, a força do Espírito conduz a todos a comunhão trinitária, tendo como ápice a Eucaristia, começo e concretude da missão cristã (Cf. DAp, 2008, p.78-79).

Nas últimas décadas do século XIX, surge um movimento crescente referente a atuação dos leigos, primeiramente de forma isolada e seguida por uma maior organização destes. Apesar de num primeiro momento está vinculada a uma relação de dependência da hierarquia e, posteriormente, percebe-se que cada vez mais o apostolado dos leigos vai ganhando certa autonomia na ação evangelizadora ad intra e ad extra da Igreja (DOMEZI, 2016).

[…] o Papa Leão XIII publicou, em 1891, sua encíclica Rerum Novarum, com abertura à concepção moderna de autonomia e à nova visão antropológica das pessoas leigas. A Igreja iniciava ali uma nova compreensão das pessoas leigas católicas, reconhecendo-as como sujeitos atuantes a sociedade moderna, as quais, chegando lá onde os clérigos da hierarquia não conseguem chegar, contribuem para uma ordem mais justa (DOMEZI, 2016, p. 161).

O sentido e a razão de ser da vida dos cristãos leigos e de sua atuação na Igreja Católica, corresponde a problemática que vem sendo discutida vigorosamente desde a provocação que o Concílio Vaticano II suscitou no seio da Igreja. Sendo que, ainda hoje é perceptível uma imprecisão e insuficiência para muitos acerca de uma efetiva definição do laicato, pois “a concentração dos carismas na figura do sacerdote é um fato histórico, teve suas razões, como já vimos, mas que não mais se justifica em nossos dias” (MIRANDA, 2019, p. 109).

Uma coisa é clara, como afirmará Bonelli (2018, p. 4), “é certo que clero e laicato possuem atribuições distintas dentro da estrutura da Igreja e respondem a vocações e carismas específicos, no tocante ao tipo de serviço ou “ministério” que exercem na comunidade eclesial”.

Tendo em vista que, vivemos hoje não mais num mundo cristianizado, mas secularizado e, por vezes indiferente, como bem nos recorda-nos o Papa Francisco na sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium), sobre a “cultura do “descartável”, que aliás chega a ser promovida” (EG, 53). Em que há uma maior preocupação relacionada a sacramentalização e não a evangelização. Desconsiderando a necessidade de um processo de adesão e conversão a Jesus Cristo, o qual tem como porta de entrada o sacramento da vida nova em Cristo, “o Batismo”.

Assim, nesse processo da acolhida do Evangelho e sendo inserido pelo Batismo na vida da Igreja, como bem nos lembra São Paulo: “Todos nós […] fomos batizados num só Espírito para formarmos um só corpo” (1 Cor 12,13). Logo, o cristão torna-se sinal de Deus onde quer que esteja, como “pedras vivas”, isto é, testemunhas vivas que constroem a justiça, a solidariedade, a fraternidade em qualquer lugar, sendo o cristão uma só coisa com Cristo, participando assim da sua tríplice missão (cf. Cl 14,16-22): Sacerdote, Profeta e Rei.

Missão Sacerdotal em que todos são consagrados para formar um povo de sacerdotes que dão testemunho de Cristo. Missão Profética na qual deve-se manifestar o “Homem Novo”, onde quer que esteja, pelo exemplo de vida e pelo testemunho da Palavra. Por fim, a Missão Real que remete ao Cristo Rei do Universo, a qual implica na participação da realeza de Nosso Senhor e é missão cada batizado se esforçar para que toda pessoa aceite e ame o Cristo. De modo que, vivendo o compromisso batismal contribuí para a transformação do mundo segundo o plano de Deus.

Assim, todo leigo e leiga “são portadores de uma vocação e de um “ministério” próprios, aos quais são consagrados não pelo sacramento da ordem como o clero, mas por outro sacramento igualmente importante que é o batismo” (BONELLI, 2018, p. 4). Contribuindo para o bem de toda a Igreja, sendo inspirados pelo evangelista Mateus a serem “sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5,13-14) na Igreja e na sociedade, posto que “a índole secular é própria e peculiar dos leigos” (LG, 31).

A concepção de uma Igreja ministerial e Povo de Deus que floresceu abundantemente na América Latina, certamente “influenciou e influencia” o Magistério do Papa Francisco, podendo visualizar isto nas suas exortações, gestos e palavras. Sendo ele filho do Concílio e seguidor fiel de suas intuições, bem como um dos redatores do Documento de Aparecida referente a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Na exortação apostólica Evangelii Gaudium (Alegria do Evangelho), o Papa diz que:

A imensa maioria do povo de Deus é constituída por leigos. A seu serviço está uma minoria: os ministros ordenados. Cresceu a consciência da identidade e da missão dos leigos na Igreja. Embora não suficiente, pode-se contar com um numeroso laicato, dotado de um arreigado sentido de comunidade e uma grande fidelidade ao compromisso da caridade, da catequese, da celebração da fé. Mas a tomada de consciência desta responsabilidade laical […] não se manifesta de igual modo em toda parte. Em alguns casos porque não se formaram para assumir responsabilidades importantes, noutros por não encontrar espaço nas suas Igrejas particulares para poderem exprimir-se e agir por causa de um excessivo clericalismo que os mantém à margem das decisões (EG, 102).

Nota-se neste trecho que as palavras do Papa se situam em reconhecer a importância da atuação do laicato, mas ao mesmo tempo, indicando os obstáculos e deficiências da própria Igreja na ampliação e no aprofundamento desta legítima missão dos leigos, chamando a atenção para o risco de se restringir a atuação destes somente com relação aos problemas internos da comunidade. De modo, a não se atentar à prática da fé e dos valores cristãos nas realidades em que se encontram. Consequentemente, instiga a necessidade de uma adequada preparação, à luz da fé cristã, para se encarar os desafios da sociedade contemporânea.

É preciso retomar, uma vez mais, a profundidade da compreensão de uma “Igreja discípula missionária”. É salutar a riqueza da diversidade dos dons, serviços e ministérios que irão compor um só “Corpo” (cf. 1Cor 12,13), a fim de potencializar a missão da Igreja. Logo, o colégio episcopal brasileiro, atento aos sinais dos tempos e em conformidade com os ensinamentos do Santo Padre, atesta que “urge abrir espaços de participação, estimular a missão, refletir sobre avanços e retrocessos, para fazer crescer a participação e o protagonismo dos leigos na corresponsabilidade e na comunhão de todo o povo de Deus” (CNBB, DOC. 105, n. 3).

Desta forma, vale ressaltar duas decisões importante que realizou o Bispo de Roma. O primeiro é o novo “motu proprio Antiquum Ministerium”, em que se se institui o ministério de catequista. Fato este que está em plena sintonia com o Concílio Vaticano II, destacando a ministerialidade da Igreja e reconhecendo os inúmeros homens e mulheres leigos que servem na Igreja, por vocação, mediante o ministério de catequista. O segundo fato é a nova Constituição Apostólica “Praedicate Evangelium”, sobre a Cúria Romana que entrou em vigor na festa de Pentecostes do decorrente ano, institucionalizando mudanças que já foram implementadas em grande parte para um organismo que ajuda o Papa em seu serviço à Igreja universal, destacando-se os dicastérios. Assim, os fiéis leigos podem ajudar no governo das várias instâncias eclesiais, uma vez que governar na Igreja é sinônimo de serviço.

Portanto, o apostolado dos leigos possui seu lugar específico no Magistério do Papa Francisco que vem mergulhando cada vez mais profundo na eclesiologia proposta pelo Concílio em vista de uma Igreja Sinodal. Ao suscitar uma “Igreja em saída” que aponta para o horizonte do Reino de Deus, é possível ir ao encontro das periferias existenciais. Uma Igreja toda ministerial, tendo como base o sacramento do Batismo, o qual implica numa Mãe que acolhe em seu seio os seus filhos, isto é, uma casa aberta a todos em especial os pobres. Logo, todo fiel leigo é convidado a escutar o chamado do Senhor e responder colocando-se a serviço da Igreja e sociedade, contribuindo para a Igreja ser este instrumento de Deus e sacramento universal da salvação.

REFERÊNCIAS

BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2019.

BINGEMER, Maria Clara. Ser cristão hoje. São Paulo: Ave-Maria, 2013.

BONELLI, Marco A. G. O Papa Francisco e os Leigos. Revista da Cultura Religiosa – PUC Rio, p. 4-8, 2019. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/rev_cre.php?strSecao=fasciculo&fas=33790&NrSecao=X3&secao=ARTIGOS&nrseqcon=33650. Acesso em: 20 jun. 2022.

CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade: Sal da Terra e Luz do Mundo (Mt 5,13-14). Documentos da CNBB n. 105, Brasília: Edições CNBB, 2016.

CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM SOBRE A IGREJA. In: CONCÍLIO VATICANO II. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) / [organização geral Lourenço Costa; tradução Tipogradia Poliglota Vaticana]. São Paulo: Paulus, 2017.

COMBLIN. José. O Espírito Santo e a Libertação. Petrópolis: Vozes, 1987.

DOCUMENTO DE APARECIDA. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2008.

DOMEZI, M. C. Na igual dignidade batismal: laicato, serviços e ministérios, relação de gênero no interior da Igreja. In: SANCHES, W. L.; FIQUEIRA, E. Uma Igreja de portas abertas: nos caminhos do Papa Francisco. São Paulo: Paulinas, 2016. p. 155-170.

FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

MIRANDA, M. de F. A Igreja em transformação: razões atuais e perspectivas futuras. São Paulo: Paulinas, 2019.

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